Brasil, uma Potência Marítima com Visão Limitada? Os Desafios da Gestão de Dados Geoespaciais na “Amazônia Azul”
Brasil, uma Potência Marítima com Visão Limitada? Os Desafios da Gestão de Dados Geoespaciais na “Amazônia Azul”

Brasil, uma Potência Marítima com Visão Limitada? Os Desafios da Gestão de Dados Geoespaciais na “Amazônia Azul”

O Brasil, com uma extensa zona costeira que abrange cerca de 7.400 km e uma rica biodiversidade marinha, detém a chamada “Amazônia Azul”. Essa vasta área oceânica, que inclui a Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e a extensão da Plataforma Continental reivindicada pelo Brasil junto à ONU, abrange mais de 4,5 milhões de km² de espaço marítimo sob jurisdição nacional. Com um potencial imensurável para a economia, a “Amazônia Azul” abriga recursos vivos, minerais e energéticos, além de ser essencial para o equilíbrio climático e a manutenção da biodiversidade global. No entanto, a gestão eficiente desse imenso território marinho esbarra em um obstáculo crucial: a deficiência na gestão de dados geoespaciais. Essa lacuna compromete o planejamento espacial marinho (PEM) eficaz, ameaça a soberania nacional e coloca em risco o potencial de desenvolvimento sustentável da “Amazônia Azul”.

A Defasagem Brasileira em um Contexto Global

Em pleno século XXI, o Brasil ainda “navega com visão limitada” em suas próprias águas. Enquanto nações como Noruega e Austrália investem em sistemas avançados de aquisição e análise de dados geoespaciais para gerenciar seus espaços marinhos, o Brasil se apoia em informações fragmentadas, incompletas e desatualizadas. Um estudo de Gandra & Scherer (2022) publicado no Boletim de Ciências Geodésicas demonstra a escassez de dados básicos como batimetria de alta resolução, distribuição precisa de habitats marinhos e dinâmica das correntes, essenciais para o PEM. Essa carência limita a capacidade do país de monitorar e gerenciar as atividades em sua ZEE, como a pesca, a exploração de recursos minerais e a navegação, impactando a economia, a segurança e a conservação ambiental.

A falta de dados geoespaciais detalhados dificulta, por exemplo, a fiscalização e o combate à pesca ilegal na “Amazônia Azul”. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA, 2021), a pesca ilegal gera prejuízos anuais de R$ 3 bilhões ao Brasil, além de ameaçar a sustentabilidade dos estoques pesqueiros e a segurança alimentar. A ausência de informações precisas sobre as rotas de navegação e as condições oceanográficas também aumenta o risco de acidentes e derramamentos de óleo, com graves consequências socioambientais, como o ocorrido em 2019, quando manchas de óleo atingiram mais de 1.000 km do litoral brasileiro, causando danos à biodiversidade e à economia (IBAMA, 2020).

Impactos da Deficiência de Dados no Brasil

A falta de dados geoespaciais robustos e integrados no Brasil compromete a tomada de decisão em áreas cruciais:

  • Conservação da biodiversidade: A delimitação de Áreas Marinhas Protegidas (AMPs) eficazes depende de dados precisos sobre a localização de ecossistemas sensíveis, como recifes de coral, manguezais e áreas de desova de espécies ameaçadas. Sem essa informação, a proteção da biodiversidade marinha fica comprometida. Um estudo publicado na revista Marine Policy (Spalding et al., 2021) demonstra que a falta de dados geoespaciais adequados é um dos principais obstáculos para o alcance das metas globais de conservação marinha.
  • Gestão pesqueira: A sobrepesca e o declínio dos estoques pesqueiros representam uma ameaça crescente à segurança alimentar e à economia do país. De acordo com o relatório “O Estado Mundial da Pesca e Aquicultura 2022” da FAO, a produção pesqueira mundial está estagnada e a sobrepesca afeta um terço dos estoques pesqueiros globais. No Brasil, a falta de dados sobre a distribuição e abundância das espécies impede a implementação de medidas eficazes de manejo, colocando em risco a sustentabilidade da pesca.
  • Licenciamento ambiental: A exploração de petróleo e gás, a aquicultura e outras atividades econômicas no mar exigem uma avaliação rigorosa dos impactos ambientais. A ausência de dados sobre a dinâmica oceanográfica, a sensibilidade dos ecossistemas marinhos e a presença de espécies ameaçadas dificulta essa avaliação, elevando o risco de danos irreversíveis. O Relatório de Qualidade Ambiental da Zona Costeira e Marinha (Brasil, 2023) aponta que a falta de dados geoespaciais é um fator limitante para o monitoramento e a avaliação dos impactos ambientais na zona costeira e marinha brasileira.
  • Segurança da navegação: Cartas náuticas desatualizadas e a falta de informações precisas sobre correntes, profundidades e obstáculos submarinos aumentam o risco de acidentes marítimos, com graves consequências ambientais e econômicas. A Organização Marítima Internacional (IMO) estima que a maioria dos acidentes marítimos é causada por falha humana, e a falta de informações adequadas contribui para esses acidentes (IMO, 2023).

O Planejamento Espacial Marinho: Uma Ferramenta Essencial, Mas Subutilizada

O Planejamento Espacial Marinho (PEM) é uma ferramenta crucial para a gestão integrada dos espaços marinhos, permitindo compatibilizar o uso dos recursos marinhos com a conservação da biodiversidade. No entanto, a iniciativa brasileira de PEM, ainda em fase inicial, carece de informações essenciais para delimitar zonas de uso, definir atividades compatíveis e garantir a conservação da biodiversidade. A fragmentação dos dados existentes agrava o problema. Informações relevantes estão dispersas em diferentes instituições, como a Marinha do Brasil, o IBAMA, universidades e centros de pesquisa, em bases e escalas heterogêneas, dificultando a integração e análise.

Um exemplo da importância do PEM é a delimitação de áreas para a aquicultura, uma atividade com grande potencial de crescimento no Brasil, mas que requer um planejamento espacial adequado para evitar conflitos com outras atividades e minimizar os impactos ambientais. Segundo o Relatório de Qualidade Ambiental da Zona Costeira e Marinha (Brasil, 2023), a falta de dados geoespaciais sobre a capacidade de suporte dos ecossistemas costeiros e marinhos dificulta a definição de zonas adequadas para a aquicultura, o que pode levar à degradação ambiental e a conflitos com outras atividades econômicas, como a pesca e o turismo.

Lacunas na Legislação e Políticas Públicas: Uma Análise Crítica

Embora o Brasil possua leis e iniciativas relacionadas à gestão de dados geoespaciais marinhos, como a Política Nacional para os Recursos do Mar (PNRM), o Decreto nº 6.666/2008 que institui a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) e a Norma de Acesso aos Dados e Informações Abertos da DHN (NAD-DHN), persistem desafios significativos. A ausência de uma política nacional específica para dados geoespaciais marinhos, a fragmentação de dados e a necessidade de atualização da legislação impedem o país de aproveitar plenamente o potencial da “Amazônia Azul”.

Análise Crítica da Legislação:

  • PNRM (1980): A PNRM, embora tenha sido um marco importante na época de sua criação, encontra-se desatualizada diante dos avanços tecnológicos e das crescentes demandas da gestão de dados geoespaciais marinhos. A política não prevê, por exemplo, a criação de uma base de dados nacional integrada e de livre acesso, o que dificulta o compartilhamento de informações e a tomada de decisão.
  • INDE (2008): O Decreto nº 6.666/2008, que institui a INDE, representa um avanço ao promover o acesso e o compartilhamento de dados geoespaciais. No entanto, sua implementação no âmbito marinho ainda é incipiente, com poucos dados e metadados disponíveis sobre o ambiente marinho (IBGE, 2021).
  • NAD-DHN: A Norma de Acesso aos Dados e Informações Abertos da DHN é um passo positivo na direção da transparência e do acesso à informação. No entanto, a norma se concentra principalmente em dados náuticos e não abrange toda a gama de dados geoespaciais marinhos relevantes para o PEM, como dados biológicos, oceanográficos, socioeconômicos e culturais (DHN, 2023).

Desafios para a Gestão de Dados Geoespaciais Marinhos no Brasil

A gestão de dados geoespaciais marinhos no Brasil enfrenta desafios complexos e multifacetados:

  • Coleta de dados: A coleta de dados em ambientes marinhos é complexa e onerosa, exigindo investimentos em embarcações, equipamentos e pessoal especializado. A extensão da “Amazônia Azul” e as condições oceanográficas e meteorológicas desafiadoras tornam a coleta de dados ainda mais complexa.
  • Tecnologia e infraestrutura: O processamento e armazenamento de grandes volumes de dados geoespaciais marinhos demandam infraestrutura computacional robusta e softwares específicos. A carência de investimentos em tecnologia da informação e comunicação (TIC) limita a capacidade de processamento e análise de dados no país.
  • Integração de dados: A integração de dados provenientes de diferentes fontes, com diferentes formatos e qualidade, é um desafio complexo. A falta de padronização e interoperabilidade entre os sistemas de dados dificulta a criação de uma base de dados nacional integrada.
  • Capacitação profissional: A formação de profissionais com expertise em aquisição, processamento e análise de dados geoespaciais marinhos é essencial para o desenvolvimento do setor. A escassez de cursos de graduação e pós-graduação na área e a falta de programas de capacitação continuada limitam a formação de quadros qualificados.

O Caminho a Seguir: Construindo uma Gestão Eficaz de Dados Geoespaciais Marinhos

Para superar os desafios e garantir a gestão eficiente de dados geoespaciais marinhos, o Brasil precisa adotar medidas urgentes e estratégicas:

  • Criar uma Política Nacional de Dados Geoespaciais Marinhos: Essa política deve estabelecer diretrizes claras para a coleta, processamento, armazenamento, análise e compartilhamento de dados, com foco na padronização, interoperabilidade e acesso público à informação. A política deve ser elaborada de forma participativa, com a contribuição de diferentes setores da sociedade, como órgãos governamentais, instituições de pesquisa, empresas e organizações não governamentais. Essa política deve incluir a criação de uma base de dados nacional integrada e de livre acesso, com informações geoespaciais sobre o ambiente marinho, a biodiversidade, as atividades econômicas e os aspectos socioeconômicos e culturais da zona costeira e marinha.
  • Investir em Levantamentos Sistemáticos: É crucial realizar levantamentos hidrográficos, geofísicos, biológicos e oceanográficos de forma sistemática e com tecnologias modernas para obter dados de alta resolução e cobertura espacial adequada. O Brasil deve investir em tecnologias como veículos autônomos subaquáticos (AUVs), sensores remotos e sistemas de informação geográfica (SIG) para a coleta e análise de dados geoespaciais marinhos.
  • Desenvolver uma Plataforma Nacional de Dados Geoespaciais Marinhos: Essa plataforma deve integrar dados de diferentes fontes, utilizando padrões e protocolos abertos, e fornecer ferramentas de análise e visualização para apoiar o PEM. A plataforma deve ser de fácil acesso e utilização, permitindo que diferentes usuários, como pesquisadores, gestores e o público em geral, acessem e utilizem as informações marinhas. A plataforma deve ser interoperável com outras bases de dados nacionais e internacionais, como o Sistema de Informação e Gestão do Mar (SIMAR) e o Global Marine Spatial Planning (GMSP) database.
  • Fortalecer a Capacitação Profissional: É fundamental investir na formação de profissionais especializados em aquisição, processamento e análise de dados geoespaciais marinhos, bem como em planejamento espacial marinho. É importante criar programas de capacitação continuada para profissionais que atuam na área e incentivar a formação de redes de cooperação entre instituições de ensino e pesquisa.
  • Promover a Cooperação Internacional: O Brasil deve buscar cooperação com outros países e organizações internacionais para compartilhamento de dados, transferência de tecnologia e desenvolvimento de capacidades. A participação em iniciativas internacionais, como a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (2021-2030), pode contribuir para o avanço da gestão de dados geoespaciais marinhos no Brasil. O país deve buscar parcerias com países que possuem experiência na gestão de dados geoespaciais marinhos, como a Noruega, a Austrália e os Estados Unidos, para troca de conhecimentos e desenvolvimento de projetos conjuntos.

Conclusão:

A gestão eficiente de dados geoespaciais marinhos é crucial para o futuro da “Amazônia Azul” e para o desenvolvimento sustentável do Brasil. Ao superar os desafios existentes e adotar uma abordagem integrada e baseada em ciência, o país poderá garantir a soberania nacional, a conservação da biodiversidade e o uso sustentável de seus recursos marinhos. A criação de uma política nacional específica, o investimento em levantamentos sistemáticos, o desenvolvimento de uma plataforma nacional de dados, o fortalecimento da capacitação profissional e a promoção da cooperação internacional são medidas essenciais para alcançar esse objetivo. É fundamental que o governo, a sociedade civil e o setor privado se unam para construir uma visão de futuro para a “Amazônia Azul”, baseada no conhecimento, na inovação e na sustentabilidade.

Referências:

  • Brasil. (2023). Relatório de Qualidade Ambiental da Zona Costeira e Marinha. Brasília: Ministério do Meio Ambiente.
  • DHN. (2023). Norma de Acesso aos Dados e Informações Abertos da DHN. Rio de Janeiro: DHN.
  • FAO. (2022). O Estado Mundial da Pesca e Aquicultura 2022. Roma: FAO.
  • Gandra, T. B. R., & Scherer, M. E. G. (2022). Onde estão os dados para o Planejamento Espacial Marinho (PEM)? Análise de repositórios de dados marinhos e das lacunas de dados geoespaciais para a geração de descritores para o PEM no Sul do Brasil. Boletim de Ciências Geodésicas, 28.
  • IBAMA. (2020). Relatório de Monitoramento do Derramamento de Óleo na Costa Brasileira. Brasília: IBAMA.
  • IBGE. (2021). Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) – Relatório de Atividades 2020. Rio de Janeiro: IBGE.
  • IMO. (2023). Annual Report 2022. Londres: IMO.
  • MAPA. (2021). Plano Nacional de Combate à Pesca Ilegal. Brasília: MAPA.
  • Marinha do Brasil. (2023). Amazônia Azul: O Brasil e o Mar. Brasília: Marinha do Brasil.
  • Spalding, M. D., et al. (2021). Protecting marine spaces: global targets and changing approaches. Marine Policy, 127, 104458.